Christiana Cabicieri Profice*
Resumo
:
O presente artigo levanta alguns pontos para debate sobre a intervenção
do psicólogo e do pesquisador em comunidades a partir de descobertas
preliminares de uma pesquisa sobre a família popular.
Palavras-chave: Família popular, intervenção em comunidade, educação infantil
Abstract:
This article introduces some points over the discussion about the researcher
and the psychologist intervention at communities through the
preliminary
discoveries of a research about the popular family.
Autor:
Christiana Cabicieri Profice
Instituição
de origem: UESC- Universidade Estadual de Santa Cruz
Função:
Professora Assistente/Psicologia Geral – DFCH
Titulação:
Mestre em Psicologia Clínica e Patológica pela Université René Descartes –
Paris V
Endereço:
Rua Julio de Brito, 243 – Pontal – Ilhéus/BA CEP 45650-000
e-mail:
fifa@maxnet.com.br
Tel. (73)6325523
Gostaríamos
de discutir aqui algumas observações sobre a transversalização de saberes
produzidos no quadro de uma investigação psicológica
que se desenrola em uma pré-escola comunitária(1).
Para tal, iniciaremos com uma breve exposição dos interesses, hipóteses e métodos
propostos pela pesquisa e, num segundo momento, discutiremos alguns analisadores
que já podemos depreender das trilhas que vem sendo abertas.(2)
A
pesquisa formalizada enquanto tal foi engendrada a partir de uma intervenção
psicológica iniciada em1999 por encomenda do Centro Comunitário Nossa Senhora
da Conceição, situado em um bairro de periferia de Ilhéus. O psicólogo foi
solicitado a intervir nas duas instituições que prestam atendimento à
referida comunidade, um pré-escolar e um espaço cultural voltado à adolescência.
As
observações realizadas nas salas do pré-escolar integradas aos diálogos
estabelecidos entre a psicologia e a prática da educação infantil durante as
reuniões com os educadores, organizaram-se em um procedimento investigatório
orientado pelas questões que pontuaremos a seguir.
Constatamos, apoiados em outras investigações(3),
que a família popular vem sendo considerada como principal responsável pelo
fracasso no processo de escolarização. É uma afirmativa comum, e ainda pouco
questionada, a de que as crianças que apresentam algum tipo de desajuste venham
de um contexto familiar desfavorável, violento, desestruturado. Assim, criou-se
a vinculação automática entre dificuldades escolares e a qualidade da convivência
familiar. Outros estudos nos apontaram que o fato da família popular se
organizar diferentemente daquela que normalmente consideramos como hegemônica e
« ideal » para a Educação, a situa como estando a priori
em inadequação com as orientações educativas(4).
Averiguamos que de fato o saber científico expresso na literatura pedagógica
tradicional acaba por apontar as famílias populares como desviantes em relação
à ordem, como desorganizadas, desestruturadas, faltantes, produzindo assim uma
prole incapaz de ser educada. Acreditando que seja possível a formulação de
um saber capaz de conceder um outro status à família popular, optamos por
dirigir nossa atenção à vivência da criança, certos de que com esse
procedimento nos aproximamos do saber produzido acerca de si pela própria família
popular. Nossa abordagem procura portanto compreender a relação/contradição
da socialização primária, ou a interiorização da realidade a partir do convívio
da criança com outros significativos - criança/família
- e a socialização secundária, que se realiza a partir de interiorizações
posteriores e cumpre função facilitadora da adaptação dos indivíduos a
novos papéis - criança/escola.(5)
Se
pretendemos compreender esta possível contradição entre os saberes adquiridos
na socialização primária e aqueles apresentados pela escolarização, devemos
inevitavelmente estabelecer um território de interseção entre os dois. Por
esta razão, optamos por uma abordagem investigativa particular, nunca perdendo
de vista nosso intuito de analisar um processo e suas conseqüências em tempo
real. Será no Brinquedo, no que ele expressa e no que ele cumpre enquanto função
de transição, que instalamos nosso campo de observação. A atividade lúdica
deve, para tal fim, ser considerada enquanto mecanismo de satisfação de
necessidades e, não somente, ser definida como atividade prazerosa. Segundo
Vigotskii(6)
a brincadeira viabiliza a realização de tendências que não podem ser
imediatamente satisfeitas. O que nos interessa neste princípio é que, ao
brincar, a criança tenta ser o que ela pensa que deva ser, estabelecendo regras
de comportamento para a própria situação imaginária, porém tendo sempre
como referência a sua experiência concreta. Focalizando nossa atenção
especificamente no « brincar de família », entramos em contato
direto com o material psíquico produzido pela criança a cerca da sua própria
socialização primária. Ainda segundo o mesmo teórico, este fato por si só
coloca a infância no centro da pré-história do desenvolvimento cultural. A
primeira infância revela-se privilegiada como período de investigação da
linguagem, já que constitui-se enquanto momento de transição e inserção, de
estruturação das funções psicológicas superiores sobre as quais se apoiarão
os futuros aprendizados escolares.
A
partir dos elementos apresentados consideramos que a
observação sistematizada da
linguagem produzida no brincar em crianças pré-escolares de uma creche comunitária,
pode fornecer subsídios para a elaboração de um novo conhecimento acerca da
família popular, capaz de reorientar paradigmas educativos e de contribuir na
construção de novas práticas pedagógicas
preventivas da inadaptação escolar. Para tal fim, nosso campo de
observação sistematizada é a brincadeira, mais especificamente, as situações
que envolverem o brincar de família como casinha, comidinha, mamãe e papai,
boneca, etc. A princípio nos limitaremos a observar o surgimento espontâneo da
temática familiar no brinquedo, o que não exclui a possibilidade de que
posteriormente possamos intervir sugerindo situações imaginárias. Tanto o
contexto de sala como o momento de recreação livre estão contemplados em
nossos períodos de observação. Temos buscado efetuar o registro videográfico
e fotográfico do maior número de sessões possíveis.
Apresentadas
as bases da pesquisa que vem sendo empreendida gostaríamos de pontuar algumas
questões que vimos formulando durante nosso percurso. Em primeiro lugar,
ressaltaremos o analisador-registro imposto pela investigação, compreendendo
seus investigadores, seus equipamentos e seus procedimentos. Num segundo momento
tentaremos traçar linhas diretivas para que esse analisador cumpra sua função
de revelador de uma verdade.
Ainda
que a presença do psicólogo e do seu olhar já fizessem parte do cotidiano da
instituição, quando este passa da escuta e manipulação discursiva do
problema psicológico individualmente personalizado para a investigação científica
generalizante e mediada, uma nova gama de relações com o conhecimento se
estabelecem.(7)
Instalam-se o ambiente de pesquisa, sua equipe, seus aparatos, sua
multiplicidade de interesses coletivos e particulares, seus tempos, registros e
anotações. É o surgimento de um ambiente inédito que redinamiza a circulação
e a produção de saberes, sejam eles científicos ou não. Mesmo que investigação seja consensualmente considerada
como um processo capaz de levar os educadores a melhor compreender suas práticas
e com isso aperfeiçoa-las, pesquisar significa investigar, perguntar, chegar a
conclusões. Não que a prática do psicólogo não seja igualmente
investigativa, interrogativa ou mesmo conclusiva. Contudo, nos tem chamado atenção
a diferença que se estabelece entre estas duas práticas, e por que não, estes
dois papéis? Enquanto o psicólogo está geralmente associado ao campo constituído
pela saúde/doença/cura individual, o pesquisador parece ter tombado ingênuo e
curioso em um universo a ser organizado a partir da ordem da ciência, perdendo
a primeira vista, o perfil intuitivo e quase místico característico ao psicólogo.
Tais
reflexões nos conduzem a pulverizar o campo de alcance de nosso
analisador-detonador, interrogando o modo como nossa investigação situa a
produção do saber. Como foi acima esclarecido, nos voltamos primordialmente ao
discurso e à expressão infantil, partindo do pressuposto que a verdade acerca
da família popular pode ser alcançada na verdade revelada pela criança. Esta
última é eleita como fonte fidedigna do conhecimento que visamos construir.
Nossa orientação inicial considera que será expressão da criança que dirá
a verdade sobre as verdades cientifico-pedagógicas estabelecidas que, a nosso
ver, tem tratado a dimensão familiar de forma equivocada e antagônica aos
interesses da própria família popular. A partir de uma análise preliminar,
podemos avançar a idéia de que a concepção educativa da família se inadequa
justamente por se revelar como imagem de um olhar externo e excludente, por
ditar uma ótica que, no caso da educação comunitária, contradiz a própria
experiência de seus atores. Não queremos elaborar conclusões definitivas pois
a pouco inauguramos nossas trilhas. Contudo, gostaríamos de ressaltar que
somente um modo de investigar que considere a família popular e, mais
especificamente a criança,
enquanto legítimo outro pode nos oferecer pistas para a construção de um novo
modo de saber.(8)
Transversalizando esta nova forma de encarar a família , a criança e o seus
saberes, concordamos com Maturana quando ele considera que “o educar se
constitui no processo em que a criança ou o adulto convive com o outro e, ao
conviver com o outro, se transforma espontaneamente, de maneira que seu modo de
viver se faz progressivamente mais congruente com o do outro no espaço de
convivência. O educar ocorre, portanto, todo o tempo e de maneira recíproca”
(Maturana, 1998, pp.29). Portanto, nossa intenção será produzir e espalhar um
conhecimento científico-comunitário capaz de instalar novos dispositivos de ação
para os educadores e, conseqüentemente contribuir na discussão que acerca do
papel dos psicólogos que atuam em comunidades(9)
Gostaríamos
de finalizar expondo e indagando um fragmento do registro de uma interação
entre as crianças e o observador no ambiente lúdico da casinha. “O centro
do lar é organizado em um dos ângulos da sala e é composto por uma caminha de
madeira, uma mesa com cadeiras e um armário dentro do qual são guardados
brinquedos, bonecas, roupas, panelinhas, etc. Algumas meninas brincavam com as
bonecas disponíveis (industriais, loiras, gastas, sem braços) e os meninos
estavam pelo chão, outros faziam bolos, comidas. Chamei os meninos para
participarem da brincadeira com as bonecas e uma das meninas disse que menino não
poderia brincar de boneca porque senão virava mulher. As outras meninas também
concordaram, perguntei a um dos meninos e ele confirmou que não podia brincar
de boneca, que garoto brinca de carro, de sair parar trabalhar. Insisti no tema,
será que o menino não poderia cuidar das crianças? Uma menina falou que sua mãe
trabalhava e que o papai é quem olhava o neném, os outros também relataram
situações semelhantes. Eu contei que havia saído de casa naquela manhã e
deixado minha filha mais velha e minha bebê com meu marido. Uma delas me pediu
para levar minha neném para que ela pudesse conhecer, depois se lembrou de que
eu já a havia trazido uma vez. Ela mesma concluiu, quando o menino é grande
pode cuidar do neném mas quando o menino é pequeno não pode porque vira
mulher.”(10)
Este momento revela a contradição entre as regras da socialização
explicitadas no brincar de boneca – a interdição para o menino, e a vivência
doméstica na qual o pai pode cumprir a função
de cuidar de bebês quando necessário. Destacaríamos não enquanto conclusão,
mas como ponto de partida, que este território proporcionado pela brincadeira
nos apresenta uma via de diálogo
entre os valores-saberes compartilhados tanto pela criança como pela ideologia
da distribuição de papéis na família e a experiência de como as funções
familiares se reorganizam a partir de um dado contexto. Evidenciando estas
contradições no debate com as crianças, lhes apresentamos a possibilidade de
construir um novo valor-saber capaz de propor um outro equilíbrio nas relações
de gênero.
Este
apanhado inicial do que vimos descobrindo em nossa pesquisa nos oferece
múltiplos ângulos para múltiplos olhares. Tais constatações nos
conduzem a afirmar que o psicólogo deve, antes de tudo, resgatar sua função
investigativa como principal ferramenta de trabalho em comunidades. Finalizamos
este breve artigo sabendo que,durante nossa investigação, outras interrogações
e conclusões serão produzidas. Longe de nos julgarmos distantes dos saberes
científicos por propormos um modus operandi que transversalize a
pergunta do pesquisador e a verdade da comunidade, seguimos nossa convicção de
que assim podemos produzir um saber mais autêntico e, sobretudo, comprometido
com os interesses dos setores populares.
BARBIER, R. L´approche transversale – L´écoute
sensible em sciences humaines. Paris: Ed. Econômica,
1997.
LOURAU,
R. La clé des Champs - Une Introduction à l’Analyse Institutionnelle.
Paris: Anthropos,1997.
MATURANA,
H. Emoções e Linguagem na Educação e na Política. Belo
Horizonte: UFMG, 1998.
SARTI, C. A. Família e Individualidade: um problema moderno. in CARVALHO, Maria do Carmo Brant de.(org.) A família contemporânea em debate. São Paulo: EDUC/Cortez, 1995.
SZYMINSKI, H. Teorias e « teorias » de famílias. in CARVALHO, Maria do Carmo Brant de.(org.) A família contemporânea em debate. São Paulo: EDUC/Cortez, 1995.
VIgostkII, L. A formação social da mente. São Paulo: Martins Fontes, 1998.
*Professora Assistente da disciplina de Psicologia Geral da Universidade Estadual de Santa Cruz – UESC/BA. Mestre em Psicologia Clínica e Patológica pela Université René Descartes – Paris V
(1) O termo se refere à noção de ‘transversalidade’ utilizada enquanto ferramenta peal pesquisa-ação. De forma bastante reducionista designa uma rede simbólica específica, dotada de um componente estrutural-funcional em relação com um componente imaginário. Cf. BARBIER, R. L´approche transversale – L´écoute sensible em sciences humaines.Ed. Econômica – Paris, 1997.
(2) Pesquisa intitulada “A produção de linguagem em crianças de 04 a 07 anos de idade oriundas de famílias dos setores populares” desenvolvida pela Universidade Estadual de Santa Cruz – UESC Ilhéus/BA, coordenada pela Psicóloga e Professora Assistente Christiana Cabicieri Profice – DFCH.
(3)
Analisadores comprendidos como ... "elementos ou acontecimentos que,
numa dada situação são mais provocantes que outros, mais desconcertantes,
mesmo se a primeira vista eles pareçam banais ou mesmo insignificantes” -
LOURAU (René), La clé des Champs
- Une Introduction à l’Analyse Institutionnelle, Anthropos,
Paris, 1997.
(4)
Cf. SZYMINSKI, Heloisa. Teorias
e « teorias » de famílias.
in CARVALHO, Maria do Carmo Brant de.(org.) A
família contemporânea em debate. São Paulo: EDUC/Cortez, 1995.
(5) SARTI,
Cynthia A. Família e Individualidade:
um problema moderno. in CARVALHO, Maria do Carmo Brant de.(org.) A
família contemporânea em debate.
São Paulo: EDUC/Cortez, 1995.
(6)
VIgostkII,
Lev Semenovich. A
formação social da mente. São Paulo: Martins Fontes, 1998.
(7) Durante a intervenção psicológica nunca foram utilizados recursos auxiliares como testes ou qualquer outro tipo de material.
(8) Termo utilizado por Maturana para estabelecer uma equivalência nas interações humanas. Cf. MATURANA, Humberto. Emoções e Linguagem na Educação e na Política. Belo Horizonte, UFMG, 1998.
(9) Preferimos não utilizar o termo psicólogo-comunitário porque acreditamos que para atuar em comunidades o psicólogo não necessite de uma formação específica. A formação geral do psicólogo deveria ser mais abrangente e não tão dirigida à clínica como observamos atualmente
(10) Trecho extraído do diário de pesquisa do observador.